Por que creio que (alguns) dons espirituais cessaram

Daniel Figueiredo
10 min readFeb 22, 2021

Se você é cristão, talvez já tenha ouvido falar sobre os dons espirituais — capacidades sobrenaturais dadas aos crentes pelo Espírito Santo para a edificação da igreja. Todos os cristãos reconhecem a realidade dos dons, mas há debate sobre como esses dons se relacionam conosco hoje. Embora haja uma variedade de posicionamentos, em linhas gerais o debate se divide em dois grandes grupos: os continuístas, que acreditam que todos os dons mencionados na Escritura continuam disponíveis à igreja,e o cessacionistas, que creem que alguns daqueles dons tinham um papel específico para o contexto da igreja primitiva, e portanto cessaram. Este texto é uma breve defesa da posição cessacionista a partir das Escrituras.

Antes de começar, é importante deixar claro o que o cessacionismo não é. O cessacionismo não nega que o Espírito Santo continue capacitando os cristãos com dons - apenas defende que parte dos dons citados nas Escrituras eram temporários. Cessacionistas também não negam que Deus realize curas e milagres hoje - apenas entendem que curas e milagres não são operados pelo dom de pessoas específicas como acontecia nos tempos bíblicos. Dito isto, vamos ao argumento. O que quero apresentar aqui é semelhante ao que o teólogo Sam Waldron chama de "argumento de cascata". Trata-se de uma sequência em que um ponto leva ao outro, conforme a figura abaixo:

O dom de apostolado

A maioria dos cristãos concorda que não há mais apóstolos hoje em dia. Me refiro aqui aos apóstolos de Cristo como Pedro, João e Paulo, e não aos apóstolos no sentido mais abrangente, citados na Bíblia como mensageiros enviados pelas igrejas (Fp 2.25; 2Co 8.23). Um apóstolo com "A" maiúsculo era alguém apontado diretamente por Cristo (Mc 3; Lc 6, At 1.2; 10.41, Gl 1.1); tendo sido testemunha ocular do Cristo ressuscitado (At 1.22; 10.39, 1 Co 9.1); e que ensinava com autoridade representativa de Cristo (1 Co 14.37) — critérios que não podem ser cumpridos por ninguém que conhecemos hoje. Além disso, o próprio Paulo se identificou como o último dos apóstolos (1Co 15.8) e quando o apóstolo Tiago morreu, não foi substituído por outro (Atos 12.2).

Isso indica que o ministério presencial dos apóstolos não deveria se estender por toda a história da igreja, mas foi planejado por Deus somente para aquele período inicial. É por isso que Paulo fala sobre a igreja sendo “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Efésios 2.20). A analogia é a de uma construção: uma vez que o fundamento está estabelecido, ele não precisa ser recolocado ao longo da construção do edifício. Sendo o apostolado um dos dons dados pelo Espírito Santo (1 Co 12.28–31; Ef 4:8–11 — repare que os dons são citados em uma certa ordem de preeminência, com o apostolado encabeçando a lista, o que aponta para os apóstolos no sentido mais estrito), o caráter temporário desse ofício significa que pelo menos um dos dons espirituais não permanece nos dias de hoje.

Isso lança uma luz sobre o debate. Um dos argumentos dos irmãos continuístas é que os dons foram dados para a edificação da igreja (1Co 12.7; 14.3, 26), até que "cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo" (Ef 4.13), quando "vier o que é perfeito" (1Co 13.10), e que por isso é necessário que todos os dons permaneçam até a segunda vinda de Jesus. O problema é que, se tratarmos essas listas de dons como um bloco fixo e permanente, deveríamos então crer também na continuidade dos apóstolos, já que eles também estão nas listas (1Co 12.28–29; Ef 4.11). Por outro lado, se afirmamos que não existem mais apóstolos, isso significa que, ainda que a Bíblia afirme a permanência dos dons de modo geral, é possível que dons específicos não sejam mais dados hoje.

O dom de profecia

O fim do apostolado sugere também a cessação do dom de profecia, já que os profetas, junto aos apóstolos, foram o fundamento da igreja (Ef 2.20) e canal de revelação do mistério de Cristo e da inclusão dos gentios no povo de Deus (Ef 3.4–6). Embora alguns teólogos interpretem "apóstolos e profetas" como um mesmo grupo de pessoas, esse não parece ser o caso, já que eles são apresentados como grupos distintos no capítulo seguinte (Ef 4.11). Também não se trata de profetas do Antigo Testamento, já que eles anunciaram o mistério que "não foi dado a conhecer aos homens doutras gerações, mas agora foi revelado" (Ef 3.5). Esse ministério de revelação autoritativa foi necessário nos tempos do Novo Testamento, quando essa nova mensagem precisava ser anunciada pela primeira vez, e o povo de Deus ainda não tinha a Bíblia completa.

Continuístas, por sua vez, entendem que, diferente do Antigo Testamento, a profecia no Novo Testamento seria falível e sem o mesmo peso de autoridade divina que os profetas antigos tinham. Isso é sustentado por dois argumentos principais: o fato de as profecias do Novo Testamento serem submetidas a julgamento (1Co 14.29–32; 1Ts 5.19–20); e o fato de haver profecias imperfeitas como a de Ágabo, que declarou que Paulo seria amarrado por judeus e entregue para ser preso por gentios (At 21.10–11), o que não teria sido cumprido com exatidão (At 21.27–33). Nessa visão, a continuidade de profecias não estaria em conflito com o fechamento do cânon bíblico: as profecias atuais seriam apenas mensagens de Deus que, ao serem declaradas, podem vir misturadas com erros do próprio profeta, e por isso precisam ser julgadas à luz da Escritura.

Entretanto, o fato de profecias serem julgadas não é uma novidade do Novo Testamento, pois a maneira de saber se um profeta era verdadeiro em Israel era justamente julgando as suas profecias (Dt 18.21–22; 1Sm 3.19–20). E quanto ao caso de Ágabo, o próprio Paulo parece ter confirmado as palavras do profeta após ter sido preso (At 28.17). Ágabo havia falado em nome do próprio Deus (At 21.11), assim como os profetas antigos (Ex 4.10–17; 7.1–2; Is 37.6; 51.16; Jr 1.9; 5.14; Ez 3.4; 13.3). Se sua predição não se cumprisse, ele deveria ser condenado como um falso profeta (Dt 18.15–22; Jr 14.14; Ez 13.9; Mt 7.15; 2Pe 2.1), o que não aconteceu.

Em contrapartida, temos evidências de que a profecia no Antigo e Novo Testamento eram da mesma natureza. Em Atos 2.14–18, por exemplo, Pedro declara que o que havia acontecido em Pentecostes era o cumprimento da profecia de Joel sobre o derramamento Espírito e as profecias nos últimos dias (Jl 2.28). Nesse texto, Joel não apenas usa a mesma palavra para "profetizar" que vemos no restante do Antigo Testamento, mas também fala de "sonhos e visões", fazendo referência à descrição dos profetas de Israel em Números 12.6–7. Além disso, profetas de ambos os testamentos são mencionados em passagens próximas sem que seja estabelecida nenhuma distinção entre eles (At 13.1, 27, 40; 15.15, 32). Sendo assim, entendo que o dom de profecia no Novo Testamento é da mesma natureza das profecias do Antigo Testamento, e não é mais observado nos dias de hoje.

O dom de línguas

Assim como no dom de profecia, há discussão a respeito da natureza do dom de línguas: tratava-se de idiomas humanos, ou (também) de línguas espirituais? A palavra grega glossa, traduzida como “línguas” (At 2.3, 4, 11; 10.46; 19.6; 1Co 12.10, 28, 30; 13.8; 14.2, 4) se refere a idiomas humanos. Além disso, os cristãos que falaram em línguas no Dia de Pentecostes foram ouvidos pelos estrangeiros em suas respectivas línguas maternas (At 2.1-11). Em 1Coríntios 14, Paulo se refere aos "idiomas que há no mundo" (v.10) e diz que, sem interpretação das línguas, "serei estrangeiro para quem fala" (v. 11). No verso 21 o apóstolo, citando Isaías 28.11, faz referência a “homens de outras línguas” e “lábios de estrangeiros”. Considerando esses textos, a ideia contemporânea de línguas como uma expressão de êxtase ou um idioma espiritual não parece corresponder à descrição bíblica do dom, que consiste em linguagem humana.

É verdade que Paulo disse que quem fala em línguas "não fala aos homens, mas a Deus","em espírito fala mistérios" e "edifica a si mesmo" (1Co 14.2), mas na ocasião ele se referia especificamente a casos onde não havia quem interpretasse a mensagem (v. 5), e portanto ninguém compreenderia o que estava sendo dito. Na verdade, "edificar a si mesmo" parece ser uma ironia do apóstolo, já que edificação, por definição, é um ato comunitário (Rm 14.19; 15.2; 1Ts 5.11; Ef 4.29). Paulo também escreveu sobre "falar a língua dos homens e dos anjos" (1Co 13.1), mas nesse texto ele está lidando com hipérboles, assim como "ter todo o conhecimento"(v. 2) ou "dar o corpo para ser queimado" (v. 3). Ele não descrevendo situações reais do cotidiano das igrejas, e sim propondo situações exageradas para enfatizar o seu argumento.

Mas porque dizemos que esse dom não permanece nos dias de hoje? Em primeiro lugar, o falar em línguas era um sinal de julgamento sobre os judeus que haviam rejeitado o Messias, "um sinal para os descrentes" (1Co 14.22), mostrando que outros povos agora receberam os privilégios que antes pertenciam ao Israel étnico. O tema do juízo contra Israel por meio de línguas que eles não compreendiam era comum no Antigo Testamento (Dt 28.49; Is 28.11; Jr 5.15), e agora Paulo cita o profeta Isaías associando esse juízo ao fenômeno das línguas no primeiro século. Essa função do dom de línguas estava ligada àquele momento específico da história, quando o povo de Deus se estendeu para incluir os gentios (Ef 2.12–3.6). Hoje, em contrapartida, o caráter internacional do Cristianismo já é amplamente reconhecido e dificilmente ele seria confundido com uma religião nacional judaica.

Em segundo lugar, Paulo sugere que, quando interpretado, o dom de línguas é equivalente ao de profecia (1Co 14.1–5). Ele chega a afirmar que "quem fala em línguas fala mistérios" (v.2), sendo que a linguagem de "mistério" é comumente usada pelo apóstolo para indicar que o próprio Deus estava revelando algo que antes estava oculto (Rm 11.25; 16.25–26; 1Co 2.1, 7; 4.7; 15.51; Ef 1.9; 3.3–4, 9; 6.19–20; Cl 1.25–27; 2.2; 4.3). Isso indica que as línguas tinham o mesmo caráter e autoridade revelacional das profecias — mensagens dadas diretamente da parte de Deus. Pedro já havia sinalizado essa equivalência quando descreveu o falar em línguas como cumprimento da profecia de que "filhos e filhas profetizarão" (At 2.14–18; Jl 2.28). Assim, se o dom de profecia cessou, é natural que o dom de línguas também não seja normativo para a vida da igreja hoje.

Os dons de curas, milagres e sinais

E quanto aos dons de curas e milagres em geral? É importante notar que ao longo da narrativa bíblica, essas capacidades sempre foram dadas com o fim de autenticar a mensagem de alguém que falava em nome de Deus. Foi assim com Moisés (Ex 4.1–5; Dt 34.10–12), com os profetas do Antigo Testamento (Dt 13.1–5; 18.15–22; 1Rs 18.36), com o próprio Jesus (Jo 2.11; 5.36) e também com os apóstolos (At 2.43; 5.12; Hb 2.3–4). A abundância de milagres desse tipo sempre acompanhava a chegada de uma nova etapa de revelação divina.

Não apenas isso, mas tais sinais eram "as marcas de um apóstolo" (2Co 2.12), algo que os distinguia dos demais cristãos. Mesmo quando outros cristãos realizavam milagres, como Estêvão (At 6.5–8), Filipe (At 8.5–6) e Barnabé (At 14.3), sempre há menção da presença ou imposição de mãos por parte dos apóstolos (At 6.5; 14.3). Considerando essa conexão entre esses dons e o ministério apostólico, faz sentido que eles não façam parte do dia-a-dia da igreja nos dias de hoje.

Isso não significa que Deus não possa mais realizar curas e milagres hoje. Creio que Deus cura e opera sobrenaturalmente na vida de quem ele quiser, e que devemos orar por isso (Tg 5.13–15). Mas isso é diferente de dizer que esses eventos aconteçam normativamente por meio de pessoas específicas capacitadas com dons específicos. Da mesma maneira, acredito que Deus nos capacita e move a declarar verdades à sua igreja e ao mundo, mas isso é diferente de afirmar que Deus continua se revelando por meio de profetas. Deus pode até mesmo capacitar alguém a falar num idioma desconhecido para anunciar o evangelho a pessoas de outras nacionalidades, mas isso não corresponde ao dom de línguas como vemos no Novo Testamento.

A verdade é que, na vida prática da igreja, há aspectos em que cessacionistas e continuístas não são (ou não deveriam ser) tão diferentes. Ambos podem ter abertura ao agir do Espírito Santo de diferentes maneiras. Ambos podem orar fervorosamente pedindo a Deus por um milagre. E ambos são chamados a submeter toda e qualquer mensagem ao crivo das Escrituras. Por outro lado, ambos também podem ser igualmente tentados à incredulidade: o cessacionista, ao suspeitar excessivamente de toda e qualquer possibilidade de agir sobrenatural de Deus; e o continuísta, ao depender de eventos extraordinários para ter sua fé sustentada, ignorando o agir de Deus nas coisas simples e comuns.

Em Resumo:

  1. Não existem mais apóstolos hoje. Se o dom de apostolado cessou, é possível que outros dons também tenham cessado.
  2. O dom de profecia é associado ao dom de apostolado como parte da fundação da igreja, e portanto também era temporário e cessou.
  3. O dom de línguas, sendo equivalente à profecia e relacionado ao momento entrada dos gentios na aliança, também cessou.
  4. Os dons de cura, milagres e sinais, associados ao ministério apostólico e profético, também cessaram.

LEITURAS RECOMENDADAS:

Perspectiva cessacionista:

Batismo e Plenitude do Espírito Santo (John Stott)

Dons Espirituais (Thomas Schreiner)

Perspectivas sobre Pentecostes (Richard Gaffin)

Redescobrindo o Espírito Santo (Michael Horton)

To be continued? (Sam Waldron)

Perspectiva continuísta:

Dons Espirituais (Sam Storms)

O Espírito na igreja (Craig Keener)

A manifestação do Espírito (D.A. Carson)

--

--