Por que creio na Teologia do Pacto

Daniel Figueiredo
9 min readDec 16, 2020

Qual é a relação entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento? Como a lei do Antigo Testamento se aplica aos cristãos de hoje? Quais são os planos de Deus para a nação de Israel? Essas e outras perguntas têm gerado diversidade de pensamento entre os cristãos ao longo da história, e diferentes sistemas de teologia bíblica foram formulados para interpretar a narrativa bíblica como um todo. Os mais conhecidos são o dispensacionalismo, que enfatiza a descontinuidade entre o Antigo e Novo Testamentos, e a teologia do pacto (ou Teologia da Aliança), que enxerga mais continuidade na narrativa bíblica. Mas esses dois não são os únicos sistemas existentes: há uma série de outras linhas teológicas, sendo algumas delas representadas no gráfico abaixo.

Não há espaço aqui para discutir com profundidade cada um desses sistemas, mas, podemos resumir as implicações de cada um deles em três temas básicos: a relação entre as alianças bíblicas, a relação entre Israel e a Igreja, e a relação da Lei do Antigo Testamento com os cristãos. Esses temas não são exaustivos, mas no final deste texto há uma lista de leituras sugeridas sobre cada uma dessas visões, para quem quiser se aprofundar em uma ou mais delas. Neste texto quero me concentrar em apresentar resumidamente aquela que creio ser a mais bíblica: a Teologia do Pacto.

As alianças bíblicas

Podemos entender uma aliança, ou pacto, como um relacionamento vivo de compromisso iniciado por Deus, com bênçãos e obrigações. A narrativa bíblica apresenta uma série de alianças de Deus com os homens, incluindo a aliança com Adão (Gn 1–3), com Noé (Gn 9), com Abraão (Gn 12, 15, 17), com Moisés e os israelitas (Ex 19–24), com Davi (2Sm 7) e a nova aliança em Jesus (Jr 31.31–34; Lc 22.20). A teologia do pacto enxerga essas alianças em uma linha de continuidade, e as resume em três alianças abrangentes: o"pacto de obras", o "pacto da graça" e o "pacto da redenção". Vejamos cada um deles.

Pacto de obras é o nome que teólogos reformados atribuem à aliança feita com Adão no Éden. Há irmãos de outras tradições, especialmente dispensacionalistas, que não reconhecem a existência de uma aliança com Adão, devido ao fato de Gênesis 1–3 não descrever uma cerimônia de iniciação de aliança, e nem usar a palavra "aliança". Mas há bons motivos para reconhecer a presença de uma aliança ali: os elementos comuns de uma aliança bíblica (participantes, preceitos, punição e promessa) estão presentes; outros textos bíblicos atribuem linguagem pactual à situação de Adão (Os 6.7); e o paralelo entre Cristo e Adão (Rm 5.12–21; 1Co 15.21–22) indica que ambos funcionam como representantes pactuais.

Nesse pacto o desempenho de Adão, como representante da humanidade, definiria a situação dele e daqueles que ele representava. Sua desobediência quebrou o pacto, resultando em maldição sobre toda a criação e toda a humanidade (Gn 3.14–24). Mas, como bem sabemos, não é aqui que a história termina: em meio às maldições, Deus declarou que um descendente da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3.15). Esse descendente é Jesus (Gl 4.4), que viveu a vida de obediência que deveríamos viver, e sofreu a morte que nós merecíamos sofrer como condenação pelo pecado.

Este é o pacto da graça: aqueles que creem em Jesus são reconciliados com Deus pela obra de Cristo, não por suas próprias obras. Enquanto outras visões enxergam as alianças bíblicas como substancialmente distintas, os teólogos pactuais veem as alianças de Abraão, Moisés e Davi, junto à nova aliança, como administrações deste único pacto da graça, contendo uma mesma substância: a comunhão com Deus por meio de Jesus Cristo. Embora haja descontinuidades entre as alianças, há no coração delas uma promessa fundamental que percorre toda a narrativa Bíblica: “eu serei o vosso Deus” (Gn 17.7; Ex 6.7; Lv 26.12; Jr 17.23; 31.34; 32.38; Ez 37.27; 2Co 6.16; Hb 8.12).

As alianças do Antigo Testamento não apenas anunciavam essa promessa ou apontavam para o futuro Messias — Elas administravam essas realidades na vida do povo. Os crentes não só eram salvos sob essas alianças, mas eram salvos por meio delas. As promessas de Deus a Abraão, por exemplo, correspondiam ao próprio evangelho (Gn 12.3; Gl 3.8). Elas foram feitas a Abraão e também ao seu descendente, que é Cristo (Gl 3.16) — ele é não apenas o ponto para o qual as promessas apontam, ele é também o seu ponto de partida. Estar fora das alianças de Israel significava estar "sem Cristo, separados da comunidade de Israel, sendo estrangeiros quanto às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo" (Ef 2.12). Assim, a salvação em Jesus é a bênção abraâmica sendo estendida aos gentios (Gl 3.14), tornando-os participantes do mesmo povo e das mesmas bençãos que os israelitas (Ef 3.6).

Esse pacto da graça entre Deus e homens é, por sua vez, baseado no pacto da redenção, uma aliança entre Deus Pai e o Filho para a salvação de pecadores. A narrativa bíblica é repleta de indícios desse pacto: salmos messiânicos falam de Deus Pai fazendo um juramento ao Filho (Sl 110.4, cf. Hb 7.21), e lhe dando as nações como herança (Sl 2.7–8, cf. Hb 1.5); Isaías retrata o sacrifício de Jesus como um servo cumprindo o propósito de Deus e sendo recompensado por isso (Is 42.1–4; 53.10–12); e o próprio Jesus, nos evangelhos, fala sobre uma obra que o Pai o deu para fazer (Jo 4.34; 5.30; 6.38–40; 10.18; 17.4–12), um povo dado a ele como recompensa (17.5, 6, 9, 24) e um reino confiado a ele (Lc 22.29).

Israel e a igreja

Essa compreensão de continuidade das alianças tem como consequência uma continuidade também no povo de Deus no Antigo e Novo Testamentos. Os profetas bíblicos já falavam sobre gentios sendo incorporados ao povo de Israel (Is 19.18–25; 56.3–5; 66.18–21; Zc 2.11; Ez 47.21–23), e essa inclusão acontece por meio de Jesus Cristo, que atua como indivíduo representativo de Israel. Ele é o Servo de Deus que salva Israel, mas que ao mesmo tempo é o próprio Israel (Is 49.3–6). Assim como Israel era tido como filho primogênito de Deus (Ex 4.22; Jr 31.9; Os 11.1), o mesmo título é atribuído a Jesus (Sl 89.27; Mt 3.17; Rm 1.4; Cl 1.15; Hb 1.5–6). Ele é o verdadeiro Israelita, a semente de Abraão por meio de quem as nações são abençoadas (Gn 12.1–3; Gl 3.16).

Não apenas isso, mas nós, que estamos em aliança com Cristo, somos feitos também filhos de Deus (Jo 1.12; Rm 8.15, 29; Gl 4.4–7), verdadeiros judeus (Rm 2.29), filhos de Abraão (Rm 4.13–18; Gl 3.29), Israel de Deus (Gl 6.16), verdadeira circuncisão (Fp 3.3), povo especial de Deus (Tt 2.14) e nação santa (1Pe 2.9). Não se trata apenas de uma conexão indireta em que o povo do Antigo Testamento apontava para a igreja como uma realidade futura. Trata-se de uma continuação orgânica de uma mesma comunidade: somos participantes do mesmo povo e da mesma promessa que os israelitas (Ef 2.11–13; 3.6) e enxertados na mesma oliveira da qual eles faziam parte (Rm 11.17–24; cf. Is 17.6; Jr 11.16).

Uma implicação desse ensino é o fato de que Deus não tem um plano específico para o futuro de Israel em contraste com o plano que ele tem para a igreja. Na realidade, as profecias sobre a restauração futura de Israel são aplicadas à igreja no Novo Testamento (Jl 2.28–32 / At 2.16–21; Os 2.23 / Rm 9.24–25 e 1Pe 2.10; Is 49.8 / 2Co 6.1–2; Is 54.1 / Gl 4.26; Is 57.19 / Ef 2.17; Jr 31.31–34 / Hb 8.6–13; Is 43.20 / 1Pe 2.9). Quando Paulo fala sobre o futuro do Israel étnico, fala da salvação de Israelitas por meio de Cristo (Rm 11), mas não diz nada sobre um cumprimento literal de promessas terrenas e nacionais.

A promessa da terra, em especial, visava um cumprimento universal: Abraão esperava por uma cidade celestial (Hb 11.13–16) e viria a ser herdeiro do mundo (Rm 4.13). Os profetas declararam que a presença de Deus cobriria não somente o território de Israel (Ez 37.25–28), mas toda a terra (Is 54.2–3; Dn 2.34–35, 44–45). Há aqui a mesma dinâmica entre Israel, Cristo e a igreja: Cristo, como representante de Israel, é aquele que recebe a terra por herança (Sl 2.7–8; Hb 1.2); e os cristãos, por sua vez, são co-herdeiros com Abraão (Gl 3.29), com os santos (Cl 1.12–14) e com Cristo (Rm 8.17), e por isso herdarão a terra (Mt 5.5; Ef 6.2–3) — não mais uma região geográfica específica, mas toda a criação restaurada em novos céus e nova terra (Is 65.17; 2Pe 3.13; Ap 21.1).

A lei do Antigo Testamento

Outra implicação desse entendimento das alianças bíblicas diz respeito ao entendimento da lei do Antigo Testamento e sua relação com os crentes na nova aliança. Ainda que a antiga aliança tenha chegado ao fim (2Co 3.6–11; Ef 2.14–16; Hb 8.13), a lei continua a ser relevante como revelação do caráter de Deus (Rm 3.31; 7.7, 12, 14, 22; 2Tm 3.16). Por isso, há leis de caráter universal, que se aplicam de forma mais direta a nós como mandamento (Ef 6.1–3), e outras de caráter particular, que se aplicam de forma mais indireta, como ensino (1Co 9.8–10). Cada lei deve ser interpretada em seu contexto e à luz da pessoa e obra de Cristo.

Mas há um grupo específico de leis que recebe destaque: os Dez Mandamentos. Diferente das demais leis, o decálogo foi escrito e anunciado pelo próprio Deus (Ex 20.1, 24.12, 32.16, 34.1, 28, Ex 21.1, 24.3–4, 34.27) e guardado dentro da Arca da Aliança (Ex 25.16, 40.20, Dt 10.1–6, 31.24–26). As leis foram entregues com distinção entre os Dez Mandamentos e os “estatutos e preceitos” a serem observados na terra de Canaã (Dt 4.13–14, 6.1). Já no Novo Testamento, trechos do decálogo são aplicados de maneira direta aos crentes (Rm 13.8–10, Ef 6.1–3, Tg 2.8–11); e Paulo faz alusão ao decálogo quando fala da lei que por natureza é comum a judeus e gentios (Rm 2.14–29) e quando descreve as transgressões de uma pessoa injusta (1Tm 1.9–10). Além disso, parece haver uma forte conexão entre a lei escrita em pedra na antiga aliança e a lei escrita nos corações na nova aliança (Jr 31.31–34; 2Co 3.3).

Tudo isso sugere que o decálogo faz parte daquele conjunto de leis válidas para todos os homens, em todos os lugares e em todas as épocas — aquilo que muitos teólogos chamam de lei moral. Outras leis, como aquelas associadas ao culto, ao templo e ao sacerdócio (comumente classificadas como lei cerimonial) eram sombras que apontavam para Cristo (Cl 2.16–17; Hb 7–10) e faziam parte da barreira entre judeus e gentios que Jesus derrubou (Ef 2.13–18), e por isso não são mais necessárias (Mc 7.18–19; At 10.10–16; 15.1–21; Gl. 2.3–5; 5.1–6; 6.12–15). Já aquelas leis relacionadas à teocracia e ao dia-a-dia do povo hebreu (chamadas de lei civil ou judicial) terminaram com o fim da teocracia judaica, e por isso se aplicam a nós de maneira indireta, como princípios (1Co 5.1–13; cf. Lv 20.10; 1Co 9.8–10; cf. Dt 25.4; 2Co 6).

Em resumo:

  1. A teologia do pacto fala de um pacto de obras com Adão e um pacto de obras em Cristo, sendo este baseado no pacto da redenção entre Deus Pai e o Filho. As alianças de Deus com Abraão, Moisés, Davi e a nova aliança são administrações do pacto da graça e contém a mesma substância: a comunhão com Deus por meio de Jesus Cristo.
  2. A igreja do Novo Testamento é uma extensão do povo de Israel do Antigo Testamento, que se estende para incluir pessoas de todas as nações como parte do mesmo povo e das mesmas bênçãos de Abraão. A terra prometida também se estende para incluir toda a criação restaurada, de modo que Deus não tem para o Israel étnico um plano distinto do seu plano para a igreja.
  3. Embora a antiga aliança tenha chegado ao fim, há uma continuidade fundamental em termos de padrão moral de Deus para os homens (lei moral), e esse padrão está resumido nos Dez Mandamentos. As leis ligadas ao culto, templo e sacerdócio (lei cerimonial) e as leis ligadas à teocracia e ao cotidiano hebreu (lei civil) não são mais aplicados diretamente aos crentes.

Leituras Indicadas:

Discontinuity to Continuity (Benjamin Merkle)

Dispensacionalismo (Charles Ryrie)

Dispensacionalismo Progressivo (Craig Blaising & Darrell Bock)

Aliancismo Progressivo (Stephen Wellum & Brent Parker)

Teologia Bíblica Batista Pactual (Fernando Angelim)

O Deus da promessa: introdução à teologia da aliança (Michael Horton)

O Cristo dos Pactos (Palmer Robertson)

Teologia Bíblica do Novo Testamento (G.K. Beale)

Lei e Evangelho: a posição reformada teonomista (Greg Bahnsen)

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